Aprovam um copo de gracejo

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Um lindo velório

Um octogenário careca deita no caixão acobertado pelas mais fúnebres flores
Rosas que cheiram a morte.
Com o corpo quase inerte repousado na madeira lustrada, ele espera
E espera e espera e espera. Espera.
Os suspiros oscilam até o momento em que nada lhe resta
Não há fôlego, não há boca.
Há o vestígio da carne do velho careca

As pessoas que assistem esse lindo velório consentido apenas aguardam
"Próximo!" ecoa uma voz do auto-falante
E pela porta, rastejante e pesado, entra outro velho
Menos careca, mais melancolia
Acomoda-se com pressa noutro caixão, noutra morte
Calado, introspectivamente calado

Após o silêncio, até então constante, ouve-se as orações sussurrantes dos pecadores
Que assistem angustiados o espetáculo em cartaz
Ainda de olhos abertos
O velho tosse
E expira
Quem diria: sua ultima marca na terra, uma tossida
Tosse seca, custante a sair

E o auto-falante volta a ressoar

Em meio a esse entra e sai (entra vivo sai morto)
Meus olhos zonzos, zonzinhos, vêem passar pela porta uma doce garotinha
Loura, na flor da infância
Os pezinhos pequenos acusam: tem pouca idade neste anjo
Os olhinhos amendoados refletem: tem tanta inocência nesta flor

Pouco a pouco, meio desnorteada assim como eu, a menininha caminha
Colocam uma escada
Ajudam-na a subir
"Socorro, ajudem-na!" grito, grito, grito. Ninguém ouve, só oram
Ela entra no caixão transbordando pureza
Transbordando infância

Em seus olhos arregalados, me encontrei.

Os pezinhos balançam
Inquietos
As mãozinhas fazem força para levantar
Curiosas
Não quer esperar.
Não sabe o que esperar.

Assim como eu

Um padre, que eu conhecia por sinal, vai ao encontro do caixão
Ele sorri
É dono de um sorriso cristalizado
Inclusive sorri enquanto pega o punhal amadeirado
E ainda sorria enquanto o aproxima do peito límpido
Do peito jovem, livre, ingênuo

O padre ainda mostra a brancura dos dentes castos enquanto ouve-se na sala
"Socorro, ajudem-na!" grito, grito, grito
Não há octogenário, não há velho, não há oração
Não há auto-falante
Há apenas os gritos abafados, o cheiro das rosas mortíferas e o sorriso intacto.


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