Aprovam um copo de gracejo

domingo, 16 de março de 2014

O agregado do bairro Santa Terezinha

Lá vem o velho, Mônica cochicha ao ouvido da amiga. Trôpego das pernas longas, era todo curvas e certamente se fosse menos homem e mais cal, diriam ser obra de Niemeyer. Andava todo ele pelo bairro Santa Terezinha, figura carimbada nos fofoqueiros de janelas floridas, sempre excitados por novas anedotas a fim de preencher o tédio da vida rotineira. A ficha dele na polícia é mais suja que aquele maldito planalto, as cicatrizes vem daí, é marca de cadeia; saltou por entre ouvidos e bocas curiosas uma vez. Os restos de cabelo, ralos chumaços brancos, são fruto de experiências capilares da ex-mulher metida a cabeleireira, uma desequilibrada que foi parar no hospício. Os olhos afundados arregalados amarrados em qualquer coisa que passe a sua frente advém das bruxarias da mesma ex-mulher, quando o velho se recusou a continuar como cobaia. A manta sempre à mão diziam ser do filho que fugiu com o namoradinho da escola. Credo em cruz, ave-maria, e as mulheres tirando as filhas da frente do velho já pegando no terço pra fazer oração ao santinho, me dá proteção que esse é coisa ruim.
Dia desses a filha do seu Nonô da pastelaria estava andando pelo mercadinho, quando viu o velho com a manta todo curvado vindo em sua direção. A menina já ia virar-se pro camelô, olhar umas 
bugigangas (mamãe dizia sempre pra desconversar a cabeça pra qualquer canto quando o velho passasse), quando ele parou. O velho e todas as suas curvas do corpo magro e pendente e vencido quase por completo pela crueldade da inércia parou. No meio da rua agarrou a manta com firmeza e virou-se pra loja de espelhos. A menina apessoada pela curiosidade seguiu o velho com os olhinhos amendoados, olhinhos de ''por que? pra que? onde?''. 
Ele fixou-se nos espelhos. Eram tantos – arredondados, largos, pequeninos, achatados, torcidos, retorcidos. Um aglomerado de olhares envidrados, perseguindo uma saída além da reflexão. As mãos vacilantes, a manta ao chão. Diversos velhos numa mesma sala. Rostos esquecidos. Peles maltratadas. Veias saltadas. Bocas murchas entreabertas. Crânios expostos. Camisas furadas. Mantas ao chão, mitos ao chão. Eu existo afinal, lia-se em seus olhos. O velho começa a tocar o rosto com a agonia entre a sujeira das unhas no mesmo instante em que os outros velhos começam a tocar os outros rostos com outras unhas sujas. Não havia nada além de histórias contadas por buchichos antes disso, ele era feito de suposições, mas agora é real. Ser real. Ser real? Mais uma vez ele para espera respira. Para espera respira, para espera respira. Olha os reflexos uma última vez, abaixa com grande esforço, tira um sapato e joga num espelho. Arremessa outro sapato soca bate quebra rasga os reflexos maltrata o que foi pra não ter que ver de novo. Não, não, ver é um fardo, ele gritava. Não, não, ver é um fardo!Sai sangrando pela porta da loja, ainda cambaleante, deixando vidros pelo chão, a manta que poderia ser de um filho renegado largada e o olhar insistente agora encrostado em toda a multidão que se agrupara para ver a cena, inclusive na filha do seu Nonô, abraçada ao seu ''Por que? Pra que? Onde?'' O velho nunca mais foi visto pelo bairro, a loja de espelhos foi considerada amaldiçoada e posteriormente fechada. Quando seu Nonô pergunta à filha pela quinta vez o porquê dela não querer usar óculos, a menina responde com ar cansado. - Ver é um fardo, papai. 



terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Anestesia

Dois corpos nus no divã
Nus suados
suados e exasperados 
Exaltados
Eufóricos
Descontrolados 

Preenche-se a vasilha
que antes, vazia, não se distinguia
diante da multidão
de vasilhas tão secas
tão ''só vasilhas''

Mas já no lençol amassado
voa sutiã, bermuda, camisa
voa alma
voa o tempo
tempo tanto que já nem se sabe
o que o tempo de fato é

Fica a inconstância
fica o desapego do mundo
O aconchego da pele
Os sussurros cantados
A valsa do desejo mútuo

Fica a anestesia da vida.

(Extraído do livro Movimento: da palavra ao texto
Editora Leopoldianum, 2014)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Hoje

Um sorriso
e a condenação

Um suspiro
e a redenção

Sopros de pacificação
numa alma perturbada

Deixa disso, vem pra cá
tem estadia no meu colchão

Fica agora, não depois
divide aqui um beijo ou dois

Traceja o nosso desapego
nas pintinhas das minhas costas

Gargalha com puro prazer
que o desconhecido pode trazer

Samba com esse preenchimento
Declama teus versos com os lábios cerrados

Mas diz, diz com o maior grito que teus olhos podem dar
Até que ponto o
agir por impulso
Pode te
(e)levar

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Desfala, amor.

- Tchau - disse-me o mudo, dirigindo-se até a privada para tomar um banho. 
- Você está realmente feia com essa roupa azul, não lhe cai bem e parece uma vag...- Ele não parava de falar. O maldito, além de mudo, era daltônico. Mal conseguia distinguir o azul do vermelho. 
Enquanto ele falava e falava, eu respirava e continuava a escrever no ar, totalmente concentrada no meu trabalho. Estava realmente focada, sabe? Pouco me importava com as cusparadas que ele soltava entre um ''s'' e outro. Já estava cansada de tudo aquilo.
Era a nossa primeira noite juntos. Havíamos nos conhecido de manhã e, enquanto eu catava merda do meu cachorro na esquina de casa, ele vomitava agarrado ao poste, de porre dos abusos de uísque barato da madrugada. E não é que o desgraçado veio cambaleando vomitar justo no meu pé? Não deu em outra, foi ódio a primeira vista e quando percebi, estávamos em casa arremessando pratos pra lá e vasos pra cá. Esfregávamos um na cara do outro traições com modelos famosas utópicas, defeitos nunca vistos e lágrimas ocultas. Quando ficamos esgotados é que ele foi para a privada e eu peguei meu lápis fictício. Precisávamos de um tempo sem um ao outro. Mas ele não conseguia calar a boca de jeito nenhum, e deu no que deu. 
- Mulher, e essa calcinha beje? Tá tentando me matar ou quer que eu cometa suicídio de uma vez? - Ele continuava falando, falando, falando. Falava das minhas paredes pretas, falava dos meus livros do Paulo Coelho, das minhas orelhas um pouco grandes e da minha mãe que ele nunca tinha visto. O mudo era uma metralhadora de palavras, e eu aguentava firmemente aos tiros, contendo o sangramento na medida do possível. Até que não aguentei. 
- Querido, precisamos conversar, de verdade. 
Ele, sem parar de falar, me olhou com aquela cara estúpida de culpa, enquanto eu me aproximava. 
- O que acontece, é que eu te amo. Não consigo enxergar a minha vida sem você. Quero três filhos com você, uma casa com vista pro mar e férias na Disney. Você é o meu amor, minha musa de Vinicius de Moraes na versão masculina! 
O mudo apenas ficou calado, finalmente. Saiu da privada, secou-se sem arrancar os olhos de mim. Arrancou o papel imaginário da minha mão, tirou meu ar e abaixou minha calcinha bege. Totalmente calado.


''Proposta de finalização da Oficina de Escrita Criativa: ''O que aconteceria se o tempo começasse  a passar ao contrário? O natal seria no começo do ano. Os carros teriam cinco marchas para a ré. O alfabeto começaria com a letra 'z'. 
Escreva uma história a escolha, mas com os eventos ocorrendo de forma contrária a ordem usual.'' 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Mundo-cão

Enquanto a moça gasta suas horas de sono em frente a uma folha de papel, com a lateral da mão manchada de grafite e deixa um punhado de personagens quaisquer florescerem, um governador despe a amante do vestido luxuoso numa cama de um motel cinco estrelas e promete uma viagem ao Caribe.
Enquanto o pintor sucumbe no chão frio da sala mofada com um pincel caído ao seu lado e comprimidos espalhados ao redor do corpo inerte, maltratado e esgotado, um milionário compra um quadro de círculos coloridos escolhidos pelas secretárias de um pintor agora consagrado e devidamente aceito pela elite da arte. 
Enquanto a fotógrafa clica a fome no olhar de meninos haitianos sem mães muito menos sem natal, que brincam na lama com uma bola feita de meias velhas, um grupo de paparazzis enche os bolsos da mídia com fotos comprometedoras do artista do momento em um iate de ponta. 
Enquanto o grafiteiro corre da polícia com a meia luz dos postes de São Paulo marcando sua face envolta pela indignação; enquanto seus ouvidos quentes tentam fugir dos gritos que chamam-no de vagabundo, vândalo, maconheiro e imoral, uma mulher tem o corpo e a mente estuprados em um beco fétido ouvindo ameaças de morte sem dizer uma palavra.  
Enquanto o músico dedilha uma nova melodia por horas, com os dedos calejados e em carne viva, ansiando por mais de meia dúzia de pessoas em seu show no bar da esquina, um programa de TV que mostra um grupo de pessoas atraentes realizando provas e brigando entre si rende milhões de telespectadores. 
Enquanto os artistas vivem a sua poesia tão pisoteada, o mundo engole a arte sem dó e ainda palita os dentes. 


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ensaio sobre tijolos

Durante seu crescimento, o homem constrói com a ajuda da família, da cultura e das relações sociais um muro resistente e maciço. Um troiano em sua própria mente. Dentro desse muro, cabe o que lhe foi ensinado ser certo e suas ideologias construídas a partir de segundos e terceiros, nunca sozinho.
Quando digo homem, é para condizer com a mentalidade da nossa geração e de muitas passadas: de que o homem é superior e o criador do culto à personalidade do líder muito antes de Stalin cogitar nascer. Isso também foi construído ao redor dos muros das mulheres, infelizmente.  
Poderia passar noites citando motivos para termos essa visão inferiorizada da mulher mesmo após sua conquista nos meios literários, no trabalho fora de casa por precisarem colocar comida na mesa enquanto os maridos estavam morrendo nas guerras, no direito ao voto ou na provação de que podem ganhar tanto em uma luta de braço quanto em um ringue. As mulheres só não conquistaram o direito de serem simplesmente mulheres. 
Vê-se pelo corpo feminino ser pintado religiosamente. Peitos não só só peitos, uma bunda não é só uma bunda: devem ser símbolos virginais. O nu feminino, ou seja, o que as mulheres são em frente ao espelho ou durante o banho, necessita ser preservado. O desejo é um pecado: todas tem, mas não devem falar de maneira alguma, pois devem ser damas delicadas e comportadas. 
Esse manto santificado que cobre o corpo da mulher é uma gaiola que limita mais ainda a liberdade. O sexo preservado até o casamento é uma congratulação. Mas, se a mulher "não se aguenta", é uma prostituta. Simples assim. É nesse momento que entra a maior contradição de todas, onde o homem é ensinado desde cedo a ser um comprador assíduo de revistas pornográficas e frequentador de bordéis enquanto a mulher deve permanecer virgem. Enquanto a mulher deve permanecer calada. Enquanto a mulher deve permanecer vestida. 
O ser humano, mesmo se algum dia, conseguisse conquistar a liberdade, não saberia utilizá-la. Não saberia porque o o preconceito é vicioso, e somente sem ele a liberdade é alcançada. 
Entretanto, como o muro erguido ao redor de Tróia, o muro do ser humano não é intransponível ou inquebrável. As ideologias mudam de acordo com as reflexões. Evoluções pessoais acontecem, e por mais que possa parecer, não são um mito. Porém, exige coragem. Coragem essa que deveria ser endeusada no lugar do corpo, porque só com ela esmaga-se alguns preceitos e, consequentemente, é com ela que chega-se mais perto da obtenção da liberdade.
Um muro quebrado com vista para o mar e entrada de luz, através de uma brecha, por menor que seja, causa uma dicotomia entre os tantos muros fechados, calados e estagnados. 
Mas uma coisa é certa: sábio é quem prefere receber o sol no rosto e sentir a brisa do mar ao permanecer cinza e com problemas na coluna dentro de muros apertados. 

Meia-palavra

Perdidos
estão os ditos
que chegaram
quebrados
ao destinatário.