Aprovam um copo de gracejo

quinta-feira, 7 de março de 2013

Sobre a Terra do Nunca

Isso é uma pena. Realmente, uma pena. Inclusive a vida é como uma pena. Frágil, leve e quando menos se espera está caída no chão frio, esquecida. Eu estou esquecido. Esqueci de mim mesmo há muito tempo. Mas estou tentando me reencontrar, antes que o tempo não me dê mais tempo.
Entrei em uma fase da vida em que a frase "lembro-me como se fosse ontem" cerca-me constantemente. Então por que não usá-la para explicar o princípio de tudo? O primeiro parágrafo do enredo de toda uma vida baseada na angústia de não poder ser Peter Pan.
Enfim, lembro-me como se fosse ontem de ser um garoto muito introspectivo na infância, quieto. O ápice dessa introspectividade acontecia dentro do meu guarda-roupa esbranquiçado. Eu chegava da escola ou do parquinho e corria para o armário para chorar entre gravatinhas, camisas engomadas e lençóis dobrados. Eu ficava lá por horas. Chorava encolhido como um caracol amedrontado e gritava para a minha mente que não queria crescer.
Acho que esse medo me cercou a partir do momento que, em uma das viagens da família, conheci uma tia coberta por rugas, vestida de olheiras, com os cabelos bem ralos e o olhar perdido. Ela não falava. Não brincava. Como podia uma pessoa não brincar? Todo mundo que eu conhecia brincava. Mamãe e papai brincavam comigo o tempo todo de carrinho de rolimã ou amarelinha. Caçavam tesouros comigo. Me indignei ao me deparar com aquele rosto murchinho como maracujá passado.
"Ela já está velha, não pode brincar." mamãe me explicou.
Fiquei desesperado, não conseguia entender.
Mas agora eu entendo. Uma pena. Realmente uma pena.
Quando eu achava que tinha superado essa fase agonizante da minha infância já era um rapagão esbelto em plena década de 50, nos meus dourados dezessete anos. Era namorador, jurava  ter uma vida casta e prometia amor eterno a primeira que cruzasse meu caminho com um perfume adocicado. Um garoto de muitas paixões, volúvel e intenso como a maioria dos adolescentes. Queria todas e por fim, acabei sem nenhuma.
Se bem que, se as enfermeiras do turno da manhã, da tarde e da noite dessa minha "casa" puderem ser vistas como mulheres reais, com sentimentos (que desconheço) e sensibilidade (que nunca vi), eu posso dizer que sou um velho debilitado de sorte. E talvez, se não fossem tão rechonchudas ou simplesmente horríveis, eu desenferrujaria um punhado de cantadas que tenho guardadas num bolsinho da caixola. Mas não são, então continuarei criando raízes nessa cama, buscando o menino introspectivo que sempre fui e que foge a todo momento.
Enquanto busco esse menino, posso resumir minha adolescência a inúmeros bailes, rock o dia inteiro, confusão na escola, garotas aos meus pés e por fim, o Amor.
Foi a única vez que encontrei esse homenzinho chamado Amor nesses 83 anos. Ele entrou pelo cantinho do meu olho direito e foi descendo pelo meu corpo até chegar ao meu coração e crescer. Cresceu, cresceu e cresceu. Não posso contestar nem deixar de ser menos ridículo, já que o Amor nos deixa assim, feito bobos. Mas ela era linda. Das unhas dos pés ao couro cabeludo. E foi Clarisse que deu o impulso para o homenzinho alcançar meu olho.
Casei-me com Clarisse. Vivi por Clarisse. Escrevi cartas todos os dias para Clarisse.
Até que descobrimos a gravidez. Seria uma alegria transbordante, se não viesse acompanhada da doença.
Clarisse viveu para mim até dar a luz a nosso filho natimorto e morrer dias depois, depressiva e cuspindo
sangue pelo tapete da sala. Morrera de tuberculose. Uma doce romântica injustiçada pelo destino.
Destino? Não sei se posso usar essa palavra nesse ponto da vida. As raízes da cama estão começado a me puxar e prender fortemente meus braços, sinto isso. Estou alcançando o garoto introspectivo para fugirmos juntos. E o destino cada vez mais mais parece uma brincadeira de mau gosto criada pelo acaso.
Sobre o restante da minha vida, não tenho muito o que dizer. Clarisse e o Amor escaparam das minhas mãos com uma agilidade que mal consegui acompanhar, e eu fiquei só.
Por isso estou aqui, cheio de lembranças, é o que me resta. Vivo de lembranças para não encarar a carcaça que me transformei. Já quebrei todos os espelhos. Desconheço minha própria pele e fujo os olhos da minha carne apodrecida. Sobrevivo das memórias e por um aparelho do hospital, cercado de enfermeiras. Minhas mulheres entediantes e ríspidas.
De repente, fiquei boquiaberto. O aparelho fez um barulho linear e constante. A ultima coisa que me lembro é de olhar rapidamente para os meus dedos sós, cheios de verrugas, calos e totalmente maltratados pelo tempo.
Em seguida descobri que a morte também é como uma pena. Leve e frágil.
Mas é rápida e de certa forma tranquilizante.
Postumamente só tenho uma porção pequena de palavras para dizer: parei de falar. Parei de brincar. Não fui Peter Pan e descobri que ninguém é da pior forma. Cresci e envelheci, como todo mundo. Amargurado e cambaleante. Mas isso as rugas no meu rosto e os meus cabelos brancos falavam por si só.
Por fim, descansei.




Um comentário:

  1. Quanta sensibilidade mora em vc, linda! Parabéns!!!! Admiro seu talento! Bjs.

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