Aprovam um copo de gracejo

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Mundo-cão

Enquanto a moça gasta suas horas de sono em frente a uma folha de papel, com a lateral da mão manchada de grafite e deixa um punhado de personagens quaisquer florescerem, um governador despe a amante do vestido luxuoso numa cama de um motel cinco estrelas e promete uma viagem ao Caribe.
Enquanto o pintor sucumbe no chão frio da sala mofada com um pincel caído ao seu lado e comprimidos espalhados ao redor do corpo inerte, maltratado e esgotado, um milionário compra um quadro de círculos coloridos escolhidos pelas secretárias de um pintor agora consagrado e devidamente aceito pela elite da arte. 
Enquanto a fotógrafa clica a fome no olhar de meninos haitianos sem mães muito menos sem natal, que brincam na lama com uma bola feita de meias velhas, um grupo de paparazzis enche os bolsos da mídia com fotos comprometedoras do artista do momento em um iate de ponta. 
Enquanto o grafiteiro corre da polícia com a meia luz dos postes de São Paulo marcando sua face envolta pela indignação; enquanto seus ouvidos quentes tentam fugir dos gritos que chamam-no de vagabundo, vândalo, maconheiro e imoral, uma mulher tem o corpo e a mente estuprados em um beco fétido ouvindo ameaças de morte sem dizer uma palavra.  
Enquanto o músico dedilha uma nova melodia por horas, com os dedos calejados e em carne viva, ansiando por mais de meia dúzia de pessoas em seu show no bar da esquina, um programa de TV que mostra um grupo de pessoas atraentes realizando provas e brigando entre si rende milhões de telespectadores. 
Enquanto os artistas vivem a sua poesia tão pisoteada, o mundo engole a arte sem dó e ainda palita os dentes. 


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