Aprovam um copo de gracejo

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Desfala, amor.

- Tchau - disse-me o mudo, dirigindo-se até a privada para tomar um banho. 
- Você está realmente feia com essa roupa azul, não lhe cai bem e parece uma vag...- Ele não parava de falar. O maldito, além de mudo, era daltônico. Mal conseguia distinguir o azul do vermelho. 
Enquanto ele falava e falava, eu respirava e continuava a escrever no ar, totalmente concentrada no meu trabalho. Estava realmente focada, sabe? Pouco me importava com as cusparadas que ele soltava entre um ''s'' e outro. Já estava cansada de tudo aquilo.
Era a nossa primeira noite juntos. Havíamos nos conhecido de manhã e, enquanto eu catava merda do meu cachorro na esquina de casa, ele vomitava agarrado ao poste, de porre dos abusos de uísque barato da madrugada. E não é que o desgraçado veio cambaleando vomitar justo no meu pé? Não deu em outra, foi ódio a primeira vista e quando percebi, estávamos em casa arremessando pratos pra lá e vasos pra cá. Esfregávamos um na cara do outro traições com modelos famosas utópicas, defeitos nunca vistos e lágrimas ocultas. Quando ficamos esgotados é que ele foi para a privada e eu peguei meu lápis fictício. Precisávamos de um tempo sem um ao outro. Mas ele não conseguia calar a boca de jeito nenhum, e deu no que deu. 
- Mulher, e essa calcinha beje? Tá tentando me matar ou quer que eu cometa suicídio de uma vez? - Ele continuava falando, falando, falando. Falava das minhas paredes pretas, falava dos meus livros do Paulo Coelho, das minhas orelhas um pouco grandes e da minha mãe que ele nunca tinha visto. O mudo era uma metralhadora de palavras, e eu aguentava firmemente aos tiros, contendo o sangramento na medida do possível. Até que não aguentei. 
- Querido, precisamos conversar, de verdade. 
Ele, sem parar de falar, me olhou com aquela cara estúpida de culpa, enquanto eu me aproximava. 
- O que acontece, é que eu te amo. Não consigo enxergar a minha vida sem você. Quero três filhos com você, uma casa com vista pro mar e férias na Disney. Você é o meu amor, minha musa de Vinicius de Moraes na versão masculina! 
O mudo apenas ficou calado, finalmente. Saiu da privada, secou-se sem arrancar os olhos de mim. Arrancou o papel imaginário da minha mão, tirou meu ar e abaixou minha calcinha bege. Totalmente calado.


''Proposta de finalização da Oficina de Escrita Criativa: ''O que aconteceria se o tempo começasse  a passar ao contrário? O natal seria no começo do ano. Os carros teriam cinco marchas para a ré. O alfabeto começaria com a letra 'z'. 
Escreva uma história a escolha, mas com os eventos ocorrendo de forma contrária a ordem usual.'' 

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