Desde
criança, quando a mãe Glória gritava da cozinha ''Menina, faz um almoço do bom
que as visitas vem chegando cá'', Cordélia já largava a boneca de pano surrada e
atravessava a casa entre pulos até alcançar a boca do fogão com um sorriso
desdentado, feliz por ser útil pra sua mãezinha. A menina preparava um feijão
tropeiro de dar água na boca pra compensar a falta de fartura na mesa bamba. Como os pratos rasos eram esvaziados rapidamente, os gemidos de fome dos outros cinco filhos de mãe Glória eram constantes, e para esse tipo de reclamação ela já proferia sua clássica frase.
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Pra tapar o buraco do bucho, taca farinha.
Tacar
farinha era o costume da família. Tacar farinha no arroz, tacar farinha na
carne, tacar farinha na mandioca, tacar farinha no esquecimento. Esquecimento
esse que vinha lá de cima. Não, não era esquecimento de Deus, porque, como dizia
mãe Glória repetidas vezes para as suas crianças, “Deus ama gente que nem a
gente”. O esquecimento o qual me refiro é o do prefeito que morava na parte
alta da cidadezinha de Salgadália, o honrado coronel Leôncio, sempre muito bom
para a tal parte alta que, além da sua própria residência, contava com três
grandes casarões de fazendeiros tão podres de rico quanto de espírito.
Cidade
pequena é assim, ainda mais no nordeste: tempo de eleição é tempo de algazarra.
Voa confete, voam quilos de panfletos e se deixar voa até a mãe do candidato da
oposição, de tão intensa que é a disputa. Em Salgadália não seria diferente, e
todo ano de eleição era aquela falácia das vizinhas pra saber se, finalmente,
alguém rezou o suficiente para mandar um candidato corajoso a ponto
de enfrentar a família Bassani diretamente.
Os
Bassani se enraizaram em Salgadália no começo da década de 20, com suas malas de
couro e sua influência europeia tão admiráveis na visão míope dessa gente a
trapos e chinelas de tiras. Bendito foi o dia que um dos Bassani discursou em
praça pública com a voz inflamada e os cabelos louros grudados no rosto, totalmente
desacostumado com o calor baiano.
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Fiquem tranquilos, viemos para ajudar. Logo todos terão empregos dignos e
educação, Salgadália passará a ter um lugar no mapa e sua personalidade de um vigor demarcado será conhecida por todos.
Enquanto
o gringo embromava um português mal pronunciado, procurava seu palavreado mais parnasiano
tirando a franja suada da testa. O povo todo reunido olhava com
curiosidade a figura que falava tão bonito. Não faziam a mínima ideia do
significado de “vigor”, muito menos de “demarcado”, porém os buchichos entre
a rua de terra corriam a favor do recém chegado, que seria o próprio messias,
salvador dos pobres e oprimidos. Nessa ocasião, a avó de Cordélia, a pequenina
personagem do início da nossa trágica anedota, estava entre a multidão de
esperançosos nesse momento que marcou-a tanto quanto a cidade onde os Bassani
cravaram sua bandeira.
Com
a primeira eleição já ganha, a oligarquia de imigrantes recém formada continuou sua estadia no
poder criando dois partidos e ambos possuindo um representante da família como
candidato em todas as eleições seguintes. Os poucos que ousaram se candidatar
na oposição acabaram sumindo por dinheiro ou chumbo. Em resumo, os Bassani estavam no poder há cinquenta anos e os pobres continuavam nas suas casas de barro, indignados e de cabeça baixa.
Encher o bucho de farinha era a solução, mas buraco nenhum era tapado.
Texto gostoso de ler, com um tom de crítica à "democracia" Brasileira, achei um tanto abrangente. Parabéns Nat!
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