Aprovam um copo de gracejo

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Velhos hábitos

Está no bar quando vou tomar a minha dose solitária de uísque. Está entre casais recém formados que sussurram juras de amor eterno enquanto desviam os olhares para observar o contorno das calças jeans do quarentão tocando sua gaita ou das curvas volumosas da garçonete que sonha em ser atriz recebendo seu salário medíocre e ainda pagando as parcelas do seu velho forninho elétrico. Está no supermercado quando o marido precipita-se para longe da família e vai direto para a sessão de enlatados com o telefone na mão e um sorriso escancarado no rosto, embora o carrinho de compras esteja repleto de latas de ervilha, milho e atum e as crianças continuem a chorar.  Está nas multidões, no governo, nas casas, na escola, na mente.
Está em mim há muito, e eu não consigo me livrar desse desejo que me habita, impregna minha pele e corrompe a minha índole.
A Traição é relativa assim como a Verdade. Enquanto a primeira é comumente e certeira como a flechada de um arqueiro medieval, a segunda permanece perdida em suas ínfimas faces, suscetível a uma relação fraternal com a Distorção.
Quando levo a garrafa do velho Jack para casa e sento-me na poltrona esverdeada pronto para me perder em divagações de memórias que outrora foram momentos (muitas vezes desagradáveis e eu diria que descartáveis), pergunto-me se pode haver Verdade, mesmo vestida em uma face retraída e diminuta, na Traição.
Com um bom gole ardente e uma lata de atum aberta no braço da poltrona, remexo nas memórias atoladas que englobam os candidatos aos quais confiei meu voto em vão, as verdades que ocultei dos meus pais na adolescência, as lições de casa que fiz minutos antes do professor entrar na sala, o cachorro que demorei a ganhar e atormentei por anos a fio usando apenas um barbante, três soldadinhos de chumbo e um quintal (quão longe pode chegar a criatividade de uma criança?) e, finalmente, o mar de contradições que engoliu quem eu fui e afoga quem eu sou.
Com um suspiro, ligo a televisão: um homem toca gaita livremente num programa de talentos.


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