Está no bar quando vou tomar
a minha dose solitária de uísque. Está entre casais recém formados que sussurram
juras de amor eterno enquanto desviam os olhares para observar o contorno das calças jeans do quarentão tocando sua
gaita ou das curvas volumosas da garçonete que sonha em ser atriz recebendo seu
salário medíocre e ainda pagando as parcelas do seu velho forninho elétrico. Está no supermercado quando o
marido precipita-se para longe da família e vai direto para a sessão de
enlatados com o telefone na mão e um sorriso escancarado no rosto, embora o
carrinho de compras esteja repleto de latas de ervilha, milho e atum e as
crianças continuem a chorar. Está nas multidões,
no governo, nas casas, na escola, na mente.
Está em mim há muito, e eu não
consigo me livrar desse desejo que me habita, impregna minha pele e corrompe a
minha índole.
A Traição é relativa assim
como a Verdade. Enquanto a primeira é comumente e certeira como a flechada de
um arqueiro medieval, a segunda permanece perdida em suas ínfimas faces, suscetível
a uma relação fraternal com a Distorção.
Quando levo a garrafa do
velho Jack para casa e sento-me na poltrona esverdeada pronto para me perder em
divagações de memórias que outrora foram momentos (muitas vezes desagradáveis e
eu diria que descartáveis), pergunto-me se pode haver Verdade, mesmo vestida em
uma face retraída e diminuta, na Traição.
Com um bom gole ardente e
uma lata de atum aberta no braço da poltrona, remexo nas memórias atoladas que
englobam os candidatos aos quais confiei meu voto em vão, as verdades que
ocultei dos meus pais na adolescência, as lições de casa que fiz minutos antes
do professor entrar na sala, o cachorro que demorei a ganhar e atormentei por
anos a fio usando apenas um barbante, três soldadinhos de chumbo e um quintal
(quão longe pode chegar a criatividade de uma criança?) e, finalmente, o mar de
contradições que engoliu quem eu fui e afoga quem eu sou.
Com um suspiro, ligo a
televisão: um homem toca gaita livremente num programa de talentos.
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